quarta-feira, 10 de julho de 2013

CUMADRE FULÔZINHA

Cresci ouvindo histórias de mestiços, índios e caboclo. Minha infância foi povoada de lindos contos, belos seres místicos, isso até hoje agradeço à minha geração cheia de beleza e de belos personagens.
No Nordeste há até hoje uma pequena reserva de mata atlântica, onde histórias são contadas, com a força de um povo corajoso e batalhador que não se cansa e não para de lutar.
Falo da Cumadre Fulôzinha, cabocla linda de cabelos longos enfeitado com pequenas flores, guardiã das florestas e dos animais. Fulôzinha tinha a coragem da mulher nordestina, não permitia que ninguém entrasse na floresta e fizesse coisas más. E quem fizesse não ficaria impune. Lembro que eu andava muito em sítios vizinhos, pois fui criada na zona da mata, bem pertinho do estado de Pernambuco e as história que ouvi de Cumadre Fulôzinha me chamava a atenção. Sempre fiquei com ouvidos bem abertos, escutava de cada um suas loucas palavras de medo da menina que vivia na mata.
- De noite, logo cedo, fechamos as portas. Os meninos tem medo da Cumadre Fulôzinha.
- Por que? – Eu, muito bisbilhoteira, fiz a pergunta, já sabendo do que se tratava. E indaguei novamente:
- Será que ela entra nas casas?
A vizinha respondeu com um certo receio.
- Nunca se sabe, é melhor ninguém sair e manter as portas bem fechadas.
Eu, menina curiosa e levada, ficava meio estremecida, atenta. Vim andando para casa e com os ouvidos bem apurados para ver se ouvia os assobios. Logo me batia um medo e apressava o passo, já que tinha comentários de que ela batia, e batia sem pena nos meninos. Eu, muito menina, me juntava aos outros na intenção de saber mais sobre a misteriosa cabocla. Os meninos comentavam que se benziam, tinham um medo tão grande que muitos resolviam nem falar. Alguns me falavam que amigos deles já tinham levado surras só porque entraram na mata. Os mais velhos, quando perguntava, me diziam que a Cumadre Fulôzinha só surrava os meninos ou adultos que fossem ruins e maldosos com plantas e animais.
Mudei meu conceito com relação à Cumadre Fulôzinha, tive a maior admiração. Comecei a andar pelas matas sem medo, era assim que os dias passavam. Mais pessoas do sítio me relatavam ter tido contato com a Cumadre Fulôzinha, ouviam assobios delas e muitas vezes corriam com medo.
Um dia eu estava em casa deitada numa rede no alpendre, e comecei a ler um romance, desses que nos deixa o pensamento a voar, construindo casinhas no ar, nos leva longe. Meu pai entrou cansado, tinha acabado de chegar de trem. Era período de férias, eu e meus irmãos não tínhamos muito o que fazer na fazenda, me interessava lentamente por outros assuntos. Gostava mesmo era de assuntos que mexessem com meu ego, me deixassem com medo ou curiosa. Gosto de aventuras, pois aumenta minha adrenalina.
Nesta tarde que meu pai chegou e foi logo me perguntando:
- O que tem inventado por aqui?
- Nada de muito interessante para o senhor, Papai. Mas se puder conversar sobre a Cumadre Fulôzinha, vou gostar.
- Ah, filha, isso são histórias que vêm de muitos anos. Nem sei se é verdade, é uma lenda, nada tão interessante.
- Gosto de saber dessa história, Papai. Eu acho que é verdade, muito meninos já levaram surras.
- Filha, você está se parecendo aquelas pessoas aficionadas em roteiros de estórias e não histórias. Cuidado, mentes não prestam desocupadas. Vá ler crônicas, contos, ler livros como Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Já que gosta de histórias assustadoras, vá ler A Casa dos Espíritos, de Isabel Allende.
- Ah, Papai, eu gosto de ouvir a história de Cumadre Fulôzinha. Eu passei a manhã andando pela mata, para ver se escuto o assobio dela.
- Você ficou louca, Filha! Por favor, Filha, não brinca com essas coisas. A Cumadre Fulôzinha pode não gostar de lhe ver pisando na grama da mata dela.
- Papai! O senhor acabou de me dizer que também tem medo. Não tenha, ela é do bem. Só dá surra em meninos ruins, em quem mexe com os animais e as plantas.
- Ah, Filha! Eu estou cansado.
Já estava ficando tarde. Depois do almoço, papai sentou na sua poltrona favorita, encostou a cabeça de costas para porta e tirou aquele cochilo, como de costume.
Aproveitei isso e fui em direção à mata. Tudo muito tranquilo, o mato rasteiro dominava tudo por dentro da mata. Não satisfeita, entrei mata adentro. Olhava os canteiros sem medo, mas um pouco receosa, tropeçava em alguns pedregulhos esverdeados. Senti uns arrepios, o sol já estava ficando fraquinho. Meus passos ressoavam sonoros como uma música feita ao som das árvores. Senti de perto um assobio baixinho, com se alguém tivesse me olhando. Resolvi voltar para casa, com medo de não encontrar a saída. Cheguei certa de que senti a presença da Cumadre Fulôzinha. Entrei caladinha, meu pai nem me viu sair e nem me viu chegar. Sou obediente, mas quando se trata de histórias, principalmente dessas como a de Cumadre Fulôzinha, deixo-me conduzir pelos encantos comentados dos cabelos longos dela. Um dos meus primos também me relatou ter tido contato com a Cumadre Fulôzinha. Com um dos seus amiguinhos, ao entrar na mata, ousou fazer maldades, cortar as flores e eles apanharam muito. Foi chibatadas para todo lado, lapadas de todo tamanho, as marcas ficaram nas costas, realmente eram reais.
- Eu hein! Fiquei assustada, mas meu primo estava errado. Além de entrar na mata, foram fazer maldades.
- Eu também fui à mata - disse para o meu primo.
- Viu ela? Dizem que ela aparece para meninas.
- Nunca me disseram isso, mas eu senti a presença dela, senti um assobio bem perto de mim.
- Foi?! Então ela ia te pegar, quando o assobio está bem baixinho, é porque ela está bem pertinho.
- É, eu senti como se tivesse alguém perto de mim!
- Prima, chegasse perto de levar umas lapadas.
- Eu não danifiquei nada, não mexi com as plantas nem com os animais, ao contrário de vocês, que foram para perturbar.
Como estava em período de férias, muita gente que estudava na cidade estava de férias no sítio. Dias depois, chegou um rapaz muito audacioso, conhecido como o queridinho da cidade, uma espécie de super star. Era uma dessas pessoas que chama a atenção, principalmente das meninas, todo prosa, todo corajoso, desses que é o dono da verdade, a verdade dele, da cabeça dele.
Era riquíssimo, muito interessante, nisso não restava dúvida. Soube da história de Cumadre Fulôzinha e começou a duvidar, a debochar. Os meninos contavam para ele, que fazia chacotas. Dizia que era história de quem não tem o que fazer.
À noite todos os meninos se reuniam em um coreto que tinha no meio da fazenda do meu pai. Todo mundo se conhecia e era muito bom, muito bate papo. Estava na safra de jabuticabas. Era noite de lua, uma brisa gostosa soprava, meus pensamentos iam soltos. Ficava deitada no alpendre e lendo bons livros como meu pai sugeriu. De leve se ouvia as risadas dos meninos. Meu irmão me chamava, teve uma ideia nítida e apetitosa: jabuticaba - sempre estamos saboreando. Eu tenho uma obsessão: comer jabuticaba! Sempre isso fazia parte da minha infância, com meus irmãos e amigos, o pomar era cheio. A árvore cada vez mais preta e o chão era cheio de cascas espalhadas...
Na frente da fazenda, maravilhas da modernidade à nossa disposição, tudo feito aos caprichos do meu pai: o coreto super-aconchegante parecia mais uma praça no meio da fazenda. Minha mãe, muito atenciosa, levava suco de caju, tapioca, doce de leite, tudo para fazer a meninada e os adolescentes se sentirem à vontade. Nessa boa conversa saiu o rapaz com uma das idiotices, chamando os meninos para um desafio:
- Vou levar vocês para uma viagem fabulosa.
-Onde? - Perguntou um dos meninos.
- Na mata. Até a mata, meus caros.
- Nós não vamos - disseram meus irmãos.
- Estão com medo?
- Não. Nosso pai não quer que entremos na mata. Nós não desobedecemos a ele.
- Então quem vai, meninos? - Perguntou ele.
Quem não acreditava na história resolveram seguir. Marcaram para ir no dia seguinte. Quando meus irmão me contaram, eu fiquei apreensiva. Perguntei para eles:
- Vocês avisaram que ele vai levar umas lapadas? - logo me incendiou a imaginação.
- Sem dúvida, ele vai levar uma surra grande, com aquele deboche que ele vai fazer -disse para meus irmãos. Meu pai, ouvindo a conversa, veio até a cozinha onde estávamos sentados comendo um belo pedaço de bolo de fubá, feito pela minha avó. Ficou perplexo e perguntou:
- Aquele menino é tão aéreo assim, meio bobo, vai entrar nessa de super herói, entrar numa mata fechada de noite?
- Sim, papai, para a surpresa dele vai ser muito desagradável - meu pai sorriu e saiu. Eu conversava muito com meu pai, habitualmente compreensivo e tolerante, se mostrava sempre solidário, com espírito juvenil.
No dia seguinte, o rapaz teimoso passou lá em casa com os meninos e disse:
- Estamos prontos para ir para a nossa aventura, entrar na mata à noite. 
Fiquei calada, não disse nada. Sabemos que com pessoas estrelas não adianta debater. Meu irmão ainda comentou:
- Toma cuidado! O problema não é só Cumadre Fulôzinha. Pode aparecer pessoas maldosas, mal intencionadas. Afinal, vocês estão indo para uma mata.
Uma pequena rede de rugas estendeu-se ao redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente ficou com um sorriso cínico e disse:
- É hoje que vou estar frente a frente com a Cumadre Fulôzinha.
- Espero que você a veja mesmo – falei, também, em tom de deboche.
À tarde veio se aproximando e, logo depois, veio a noitinha bem aconchegante, caliente. O céu bem estrelado, noite de lua, tudo estava se encaixando bem. Meu pai arrumava as mesas em um dos alpendres da fazenda. Esperava um amigo importante: o sanfoneiro “Luiz Gonzaga”, seu amigo de longas datas, minha mãe preparava comidas de milho: pamonha, canjica, muita carne assando, buchada de bode, tudo o que o interior oferece de mais belo e o povo da região gosta. Nisso chegou o marceneiro chamado pelo meu pai para fazer alguns ajustes. Os meninos conversavam no coreto com o rapaz que insistia em ir à mata.
O marceneiro precisava pegar umas folhas de eucalipto mas tinha receio de ir. Ele comentou com meu pai que nada nesse mundo faria ele ir para o caminho da mata. Meu pai, curioso, perguntou o por que.
- A Cumadre Fulôzinha não perdoa quem entra na mata para tirar alguma coisa ou caçar. Ela fala a lapada.
Meu pai sorriu e perguntou quem lhe contou isso.
- Já aconteceu comigo.
- É. Quem vai mexer com o que tá quieto pode ter surpresa desagradável. É melhor não duvidar.
- Eu não duvidei, não, senhor. Só parei para pegar umas folhas de eucalipto para fazer remédio. Eu não sabia que tinha que pedir a ela e deixar mingau ou doce.
- Pode pegar aí nos meus pés - disse o meu pai.
- Se o senhor mandar alguém pegar pra mim, fico agradecido.
Meu pai chamou um dos meninos e mandou que ele tirasse as folhas de eucalipto para o marceneiro. Meu irmão mais velho conversava com o rapaz, tentando tirar dele a ideia de ir na mata. Mas sabe como é, quem se acha estrela e pensa que sabe tudo ou é melhor que os outros, não escuta ninguém. Meu irmão mais novo vai passando com os galhos de eucalipto e meu irmão mais velho pergunta para que é.
- Para quem leva esses galhos de eucalipto?
- Para o marceneiro. Ele tem medo de pegar no caminho da mata, já apanhou de Cumadre Fulôzinha. O rapaz ouvindo isso caiu numa gargalhada e disse:
- Mas nesses matos! É cada uma que escutamos.
- Não debocha! Depois não diga que não avisamos.
- Amigo, como você entra nessa? Somos jovens idealistas e dispostos a mudar o mundo. Tirar essas histórias mirabolantes.
- Não vou dissertar nem argumentar com você. Vamos deixar nossa amizade de fora - disse meu irmão. Debater certos assuntos com pessoas que resolvem formar suas conclusões, só vai aprender mesmo apanhando.
Mesmo assim, meu irmão o convidou para a festa. Já estava todo mundo se arrumando. Minha mãe feito uma princesa e meu pai já recebendo seus amigos. Eu, ansiosa para ver mesmo ele ir para a mata e levar uma boas chibatadas, afinal Cumadre Fulôzinha não mata ninguém, só dá mesmo é umas boas surras.
Fui até a cozinha e tive uma ideia. Vendo tantos doces e comidas gostosas, peguei um pratinho e separei uns doces. Levei para a janela do meu quarto na intenção de ver se a Cumadre Fulôzinha aparecia para pegar. Sabe como ficava, naquela época, meninas com essas histórias. Minhas amigas estavam chegando. Mamãe me chamava em seus aposentos, me mandando tomar banho e escolher a roupa da festa. Eu meio sem vontade de me arrumar, mas não podia fazer feio. Papai acabava de receber o convidado de honra, o Sanfoneiro Luiz Gonzaga, querido, da região de Exu. Me arrumei parecendo uma boneca e fui receber minhas amigas. Papai me chamou e me mandou pedir a bênção ao maior cantador e sanfoneiro do mundo. Naquela época era diferente, éramos acostumados a pedir a bênção aos mais velhos e aos padres da cidade.
Minhas amigas faziam uma algazarra, corriam de um lado para outro e eu querendo escapar delas para ver se os doces ainda estavam na janela. Minha avó me pedia calma e me dizia para deixar as coisas acontecerem naturalmente. Eu e minhas amigas nos sentávamos em um dos alpendres e o assunto era Cumadre Fulôzinha. Ainda bem que na fazenda tinha energia. Era raro ter fazenda com energia naquela época, mas o meu pai era um homem que tinha recursos e conhecimentos, tinha fartura e boas amizades.
Sempre valorizava amizades e qualquer coisa não resolvida, só chamava os amigos. Dizia que várias cabeças pensando era melhor do que uma ou duas. Amizade é uma das coisas mais importantes na vida, às vezes maior que o amor. Eu tenho em mente os ensinamentos do meu pai, a beleza da minha mãe, a bondade estupenda da minha avó.
Foi festa a noite inteira. Meu pai, Seu Luiz Gonzaga, os velhos amigos desde o tempo que luz era só no candeeiro. Meu pai era um homem privilegiado, meu irmão era o afilhado do Luiz Gonzaga, também afiado na sanfona. Eu sempre me dediquei aos livros e a escrever minhas poesias, meus romances.
Chegou o fim da festa, todo mundo estava indo embora. Meu pai acomodava seu amigo Luiz Gonzaga em um dos quartos de hospedes. Era tarde, ele veio mesmo foi para dormir e prosear com meu pai. De repente, ficou aquele silêncio. Todo mundo nos seus cômodos. No silêncio vem cada pensamento. Fui fazer minhas poesia, já que, na época, audiovisuais eram raros. As amizades eram colocadas no mais alto patamar. De repente, me lembrei dos doces que deixei na janela para Cumadre Fulôzinha. Me deu um arrepio e fiquei naquela, olho ou não olho? Sabe aquela coisa que você fica assim: se vai olhar e ver que é verdade ou se não vai. É medo, ao mesmo tempo, e insegurança. Mas é como meu pai sempre dizia, na dúvida é melhor constatar. Me deu coragem, lembrando dessas palavras do meu sábio pai. Me aproximei da janela e tive a coragem de abrir. Pois não tenha dúvidas, os doces não estavam lá e nem a canjica. Fiquei com aquele medo e, ao mesmo tempo, tive a certeza de que a Cumadre Fulôzinha realmente foi ali buscar a comida dela. Corri até o quarto do meu irmão, mas fiquei em dúvida ao chama-lo. Meu pai sempre me disse que não se entra em quartos de meninos assim, de surpresa. Então fui chamar meu irmão mais novo. Ele assustou-se comigo, mas veio até meu quarto ver, na janela, se não tinha derramado ou alguém tinha pego. Meu irmão mais velho, ouvindo aquela conversa, levantou e foi até meu quarto.
- Por que vocês estão ai? Já é muito tarde, o dia tá amanhecendo. Vão dormir.
- Meu irmão, a Cumadre Fulôzinha teve aqui, pode ter certeza. Deixei doces para ela na janela, antes da festa começar e ela veio buscar, sim.
- É. Então vamos olhar se não caiu do lá embaixo.
- Eu não vou - disse meu irmão mais novo.
- Vamos. Ela só bate em quem faz coisas erradas, quem vai mexer nos animais ou nas plantas.
Fomos os três em baixo da janela. Nada tinha caído. Ouvimos um mexido em umas moitas de plantas que ficavam ao lado. De repente, no clarão ainda da lua, vimos aquela mulher, com um cabelo bem comprido, assobiando bem baixinho. Ficou em pé alguns segundo, olhando em nossa direção. Depois virou para trás e foi a caminho da mata.
Meu irmão mais velho se urinou todo. Meu irmão mais novo ficou com a boca aberta e não conseguiu falar nada. Quando percebi a situação dos meus irmãos, puxei eles e os arrastei para dentro de casa. Meu irmão mais velho correu para o banheiro, meu irmão mais novo, sem fala e com a boca escancarada. Fiquei tão nervosa, achando que meu irmão tinha morrido do susto. Corri para chamar meu pai, mas minha mãe, ouvindo aquilo, já veio logo em nossa direção, reclamando. Quando se aproximou que viu meu irmão nesse estado, se desesperou e chamou papai.
- Cuidado para vocês não acordarem os convidados - dizia papai sem ter noção, ainda, do ocorrido.
Meu irmão saiu do banheiro e contou o ocorrido. Mamãe me botou de castigo dizendo que tudo isso é coisa da minha imaginação. Eu nunca podia imaginar que um dia ia ver Cumadre Fulôzinha. Sabe como são os adultos, não alcançam nossa sabedoria. Acham que tudo é coisa de menino, mas meu irmão não fechava a boca de jeito nenhum. Nunca vi uma coisa daquela. Já era tarde quando Seu Luiz Gonzaga acordou e, vendo aquela presepada do meu irmão, disse para o meu pai:
– Isso são coisas de meninos. Mas a Cumadre Fulôzinha, sempre ouvi falar nas surras que ela dá nos meninos que entram nas matas por aqui. Desde menino que escuto essas histórias. Nunca vi, mas escuto.
Meu irmão continuou por algumas horas sem fala e com a boca escancarada de dar agonia. No fim do dia já estava tudo bem. Minha mãe me chamou para uma conversa. Eu ainda estava de castigo, mas ela queria uma explicação dos ocorridos.
- Quero uma explicação, e uma boa explicação, bem convincente, ou então continuará no castigo um mês. Seu irmão tomou um susto e você é responsável por isso.
- Por que, Mamãe?
- Pelas suas histórias mirabolantes, suas criações malucas. Quer que eu enumere para lembrar sua memória? Seu irmão tomou um susto grande e, por pouco, não perdeu a voz. Já pensou nas consequências? Culpa sua, das suas ideias.
- Quer dizer que a senhora não acredita que a Cumadre Fulôzinha existe?
- Minha Filha, desde pequena que escuto essas histórias, mas nunca me interessei em saber profundamente disso. Como seu pai diz, não se deve mexer com o invisível. Você está brincando com o que não lhe compete. Isso é mistério, não brinque com essas coisas.
- Não brinquei, Mamãe. Só botei os doces na janela e ela veio buscar. 
- Você continua no castigo - insistiu mamãe.
Meu irmão mais velho, ouvindo a conversa, veio até a sala e disse:
- Então eu também tenho que ficar de castigo. Eu estava do lado de fora, eu também fui lá.
- Para que levou seu irmão? Vocês sabem a responsabilidade, né?
- E então eu vou ficar de castigo também? - repetiu meu irmão.
Minha mãe ficou pensativa. Meu irmão, muito legal, enfrentado a minha mãe por mim. Achei o máximo aquilo. Éramos muito unidos, tínhamos uma amizade sem reservas, segura, isso nos dava uma confiança grande um no outro. Mais do que ser, era preciso aparecer. Era uma cumplicidade de irmãos. Meus pais sabiam bem da nossa amizade, era uma ligação intensa entre nós. Cada vez maior entre o que efetivamente somos e a imagem que buscamos e devemos transmitir. É assim que somos, nossa aparência não busca refletir o que somos. Mas na inversão de significados, ela é o que nos define para os outros, em como cultivar nossa amizade. Aprendemos isso com o meu pai, essas definições de valores. Foi refletindo em cima disso que mamãe não viu motivos para me deixar de castigo.
A partir daí, eu e meu irmão mais velho passamos a ter mais cuidado com o nosso irmão mais novo. Papai, sempre muito compreensivo, fazia de conta que nada tinha acontecido. Meu irmão já tinha se recuperado. As férias eram maravilhosas na fazenda e eu fui em busca das minhas aventuras: ler e escrever. Mesmo sabendo que mamãe não incentivava tanto minha mente-prodígio, eu a entendia.
À noite, meu irmão, como sempre, se reuniu no coreto para prosear com seus amigos e com algumas meninas que também estavam de férias. Antes, combinamos em não falar nada do ocorrido para ninguém. O rapaz, mais uma vez, veio para debochar e desafiar quem iria para a mata com ele. Meu irmão não contestava mais com ele sobre o assunto, cada um tem o seu pensamento e faz o que quer.
- Hoje eu vou sair tarde daqui, porque quero ir pelo o caminho da mata. E vou entrar nela!
- Seja feliz, realize seu desejo - disse um dos amigos do meu irmão.
- Não vou só eu, meus primos vão também - disse ele.
Uma das meninas respondeu:
- Boa sorte.
- Vocês estão misturando as coisas. Ouvindo estórias e não histórias. Já viram que em toda festa junina, alguém vem contar essas estórias de adivinhação. Juntam as caricaturas de caipira com o folclore nordestino.
- O que você quer dizer com isso, amigo?
- É que essa história de Cumadre Fulôzinha está me parecendo mais uma daquelas figuras juninas. Roupas cheias de remendos, rostos pintados, dentes pintados na frente, parecendo banguélos. Isto é, uma figura feia e deformada para que o povo da cidade pense que quem mora no campo são pessoas malvestidas, desajeitadas, sujas e atrasadas.
- Não tem nada a ver. A Cumadre Fulôzinha é bonita, uma cabocla jeitosa, de cabelos lindos. E protege a natureza, diferentemente da figura junina. Você está cometendo um equívoco. Você acha que Jeca Tatu faz parte do folclore popular?
- Nada a ver, folclore significa conhecimento popular, tradição, patrimônio cultural. Só pode ser folclore o que brota da criatividade, da manifestação do povo. E tem que ser espontânea.
- Lhe digo, não vá pra mata mexer com o desconhecido, que você pode se dar mal.
Eu fui até o coreto e vi que meu irmão não falou nada, conforme combinamos. Escutei, ainda, parte da conversa. Vi que o rapaz era bastante estudioso, sabedor do nosso folclore nordestino. E perguntei:
- Como sabe falar tanto do nosso folclore, estuda sobre essa cultura?
-É, digamos que eu seja um estudioso, um eclético de vários assuntos.
- Mas é muito estrela, mesmo! Tchau, estrela de cinema.
Todo mundo ficou rindo, tirando sarro com a cara dele e com a resposta que eu dei. Minha mãe chamou meu irmão para se recolher. Já estava ficando tarde. É, sempre, nos sítios, era meio receoso quando a noite chegava. Era uma época de muitas estórias de assombração.
Ele foi embora com dois primos e resolvido a entrar na mata. Fiquei curiosa quando meu irmão me disse que ele estava indo para entrar na mata. Eu queria ver o resultado. Ainda chamei meu irmão para ir, mas ele estava cansado da noite passada. Minha mãe botou todo mundo para dormir e disse que estava de olho em mim.
Ela sabia que eu era muito astuta. Todo cuidado era pouco. Meu pai veio conversar comigo. Eu queria me queixar de mamãe para ele, mas, pensei assim, ele já deve ter falado com ela. Afinal tudo na minha casa era às claras.

Papai me olhava com um olhar de quem queria me perguntar alguma coisa. Eu, como esperta e inteligente que era, fui logo perguntando.
- Tá querendo me dizer alguma coisa, Papai?
- Filha, eu quis falar na frente de sua mãe. Não quero mais ela lhe repreendendo por esses assuntos seus. Sei que és astuciosa, vou lhe fazer uma pergunta:
- Você fez tranças nos nossos cavalos?
- Não, Papai. O senhor sabe que eu não tenho coragem de ficar perto dos cavalos.
-É, Filha. Fizeram umas tranças muito bonitas nas crinas e caudas dos cavalos. Eu tentei desmanchar de um e não consegui.
- Papai, Papai! Que coisa bonita, me leva lá para eu ver.
- Hoje, mais, não. Está tarde e eu estou com sono.
Fiquei muito entusiasmada, curiosa. Papai me pediu segredo, não queria aborrecer mamãe. Fui chamar meu irmão mais velho, mas ele estava num sono solto. Fiquei inquieta. Meu irmão mais novo não podia, já tinha passado por muito medo. Podia ficar com a boca escancarada de novo e podia ser outro problema. Os cavalos ficavam pertinho da casa. Da janela do meu quarto eu os avistava. Fui à cozinha, peguei uns doces. Botei num saquinho bem bonito e coloquei na minha janela.
Com certeza, ela vinha buscar. E quando dava doces a ela, desmanchava as tranças dos cavalos. Botei os doces na janela e fui ver os cavalos. Era noite de lua, não fazia tanto medo. Vi todas as tranças, lindas, muito bonitas, mesmo. Fiquei admirada. Na volta, não encontrei mais os doces na janela. Eu queria ter visto a Cumadre Fulôzinha. Ia pedir a ela para não dar umas lapadas naquele metido, afinal ele era muito inteligente, apesar da sua arrogância.
Entrei devagar, graças a Deus que minha mãe não me viu. E nem meu pai. Estava todo mundo muito cansado.
De manhã logo cedo papai se levantou e foi ver os animais, tirou leite do gado, e voltou espantado me chamando.
- Minha Filha, agora quero uma conversa séria com você. Lhe disse que os cavalos estavam com tranças e agora, acabei de constatar, todas as tranças estão desmanchadas. Você sabe me explicar o que aconteceu?
-Não, Papai, não sei. Mas o senhor quer mesmo saber? Então pense!
Notei que papai estava meio aborrecido com tantos mistérios. Pedi licença e me ausentei. Fui para o meu quarto. Afinal, quando certos aborrecimentos acontecem, nada melhor que um bom livro, me fiz desentendida.
Minutos depois, papai bateu na porta do meu quarto. Eu atendi. Ele me perguntou o que estava lendo, eu mostrei o meu livro para ele. Ele puxou uma cadeira, sentou e me pediu desculpas.
- Filha, me desculpe. Fiquei chocado, por um momento achei que você tinha desmanchado aquelas tranças.
- Não diretamente.
- Como não diretamente?
-Papai, eu botei doces na janela do meu quarto para a Cumadre Fulôzinha. Quando o senhor me falou, eu pensei nisso. Achei que tinha sido ela que tinha feito as tranças, porque na noite anterior eu botei doces para ela.
- Minha filha, já lhe falei que não brinque com o desconhecido. Seja o que for, não devemos brincar.
- Não estou brincando, Papai, eu vi Cumadre Fulôzinha.
- Tudo bem, minha filha. Essa conversa fica entre nós.
Notei que meu pai estava muito preocupado comigo, mas discreto. Meu irmão tinha marcado uma pescaria com todos os amigos, mas só dois apareceram. Muito assustados e meio desconfiados, foram logo contando para o meu irmão a novidade.
- Por que não vieram os outros?
- Não estás sabendo?
- Não. O que?
- A nossa estrela foi para a mata ontem, como ele prometeu, junto com os primos e Manuel. E levaram umas lapadas grandes.
- Manuel disse que não ia e foi.
- Pois é, levaram uma surra danada. E o pior é que os pais dele estão procurando quem deu a surra neles. Por mais que eles contem a verdade, a família não acredita.
- E estão achando que foi quem que bateu nele?
- Estão achando que foi algum forasteiro que apareceu por aqui. Estão a procura, mas até agora não encontraram ninguém. Estão dizendo que vão procurar na mata.
- Que absurdo isso. Não vou me meter nisso, não. Avisamos para eles não ir e foram. Então agora arquem com as consequência.
- É, apanharam todos os quatro.
- Vamos lá, visitá-los.
- Vou dizer para minha mãe.
- Vamos logo. Quero ver eles me contarem tudo.
Até que eu queria ir, também. Mas nem pensar, mamãe não iria deixar mesmo. Fiquei num pé e noutro, querendo ouvir e ver as marcas das lapadas. Fiquei na expectativa de meu irmão chegar e me contar as novidades.
Meu irmão demorou demais. Papai chegou e foi logo perguntando por ele. Eu fiquei sem saber o que fazer e dizer. Mas mamãe disse que foi à casa dos amigos dele. Papai ficou calado. Eu, me sentindo abandonada, já estava ficando irritada, me lembrando do deboche que ele fez com a gente.
Meu irmão acabou de chegar. Corri logo para pedir a ele para me contar as novidades, mas ele me fez um olhar de disfarce, por causa de papai e mamãe. Eu fui logo para o meu quarto, porque sabia que meu irmão ia lá me contar. Peguei um livro para ver se combatia minha ansiedade. Foi o tempo suficiente para meu irmão vir satisfazer minha curiosidade. Se sentou bem de frente pra mim e começou a me contar tudo. Fiquei boquiaberta como meu irmão mais novo havia ficado.
- Minha irmãzinha, levaram umas lapadas, que ficou as marcas. E a família deles não estava acreditando.
- E agora, estão acreditando?
- Resolveram deixar para lá.
- Parece até que estou vendo o deboche dele, insólito, brotando de dentro da mente incoerente. Bem empregado, nunca mais ele vai mexer com o invisível. Eu torcia para ver Cumadre Fulôzinha. Até que vi mais do que pensei, e nunca duvidei.
- Eu pensei que era conversa, folclore, mito. Mas hoje eu tenho certeza de que ela é mesmo protetora da floresta. Eles disseram que entraram na mata chamando Cumadre Fulôzinha, cortando plantas, jogando as flores pequenas para cima. Uma brincadeira sem graça, quando, de repente, ouviram os assobios. E disse que foi diminuindo, e foi ai que começaram as lapadas. Eles disseram que correram para fora da mata, mas não teve jeito. Cumadre Fulôzinha veio até o meio da estrada.
- Eles a viram?
- Viram. E viram as lapadas de todos os lados. E só os cabelos dela cobrindo todo o corpo, como a gente viu. Só que eles viram, enquanto apanhavam.
- Voltaram todos surrados. Bem empregado. Nosso pai sempre disse que devemos ter cuidado com as palavras. Ele disse que não acreditava, olha aí, ficou com deboches. Estou louca para vê-lo, quero ver o que ele vai me dizer.
- Vai ter oportunidade, amanhã ele vem aqui. Mas prefiro que não comente nada com papai nem mamãe, para evitar transtorno.
- Fiquei tranquila. Ciente que a partir de agora, nunca mais ele vai mexer com Cumadre Fulôzinha. Via isso mais como um preconceito com relação às crenças. Se fossemos pensar no que as pessoas dizem ou pensam a respeito das crenças, estávamos de mentes atrasadas. É a mesma coisa de vermos alguém falar errado, chamar cráudia, chicrete, pranta. Ao meu ver, tem algum defeito ou atraso mental. Era assim que eu estava vendo aquela estrelinha, todo arrogante, metido. Eu sabia que ele ia se dar mal.
- Acredito que agora ele baixe o fogo - disse meu irmão.
A noite chegou e estávamos todos dentro de casa. Papai contando suas histórias, mamãe muito feliz, vovó fazendo tricô e ouvindo rádio. A música preferida de papai, Asa Branca, era muito bonita. Eu gostava de ouvir estórias, assim como lendas, ler meus romances e papai sabia que eu era muito atenciosa a tudo isso.
Outro dia amanheceu. Eu estava apreensiva que chegasse a noite para ir conversar com o riquinho pernóstico. Eu queria tirar sarro com a cara dele e, assim, foi realizado o meu desejo. Satisfez meu ego. Ele chegou de camisa escura, todo sem jeito, principalmente quando me viu. E eu, que não queria perder uma oportunidade dessa, já fui logo me aproximando e perguntado:
- E aí, agora você acredita que Cumadre Fulôzinha dá surras mesmo com quem mexe na mata e nos animais?
- Acredito nos boatos que circulam pelos sítios. Fiquei exausto, mortalmente exausto naquela agonia. Nos amarrou com os cabelos parecendo um arame, deu umas lapadas com uma espécie de cipó. Quando nos desamarrou, foi como se tivesse dando permissão para a gente correr. Saí que nem bala me pegava. Olhei para trás e só vi os cabelos compridos de Fulôzinha cobrindo o corpo todo.
- Não foi por falta de aviso, não se deve mexer com o invisível.
- Talvez minha imaginação não tenha associado as crendices do povo do sítio. Sempre soube que no campo é diferente, mas não acreditei, achei que fosse bobagem.
- No mundo temos de tudo um pouco. E tudo tem suas verdades.
- Me diga uma coisa, você disse que ela é protetora da florestas?
- Sim.
- E quando começarem a desmatar, como é que vai ser? A tendência é o mundo crescer, eu já vejo um progresso longe. O homem é destruidor, após décadas de esquecimento, vejo que a agropecuária toma outros rumos. Passa por um processo de revalorização, é quase um redescobrimento. Vem a irrigação desenfreada, as safras.
- Nisso tenho que concordar com você. Mas os restos de mata atlântica, da mesma forma que vier o progresso, esses mistérios mudam.
- Nosso país está gerando um modelo de agricultura tropical. Vão ser obtidas elevadas produtividades.
- Falta muito para a agricultura romper esse atraso. A injustiça que permeiam os campos.
- Isso são coisas para o futuro, futuro bem próximo. Política de inclusão produtiva social. Há de se reduzir as desigualdades.
- O futuro supera o passado, empresários rurais já estão substituindo a velha oligarquia. Há agricultores, famílias que já se organizam, investem na tecnologia e começam a sair da pobreza - falou meu irmão, ouvindo a conversa.
- É como eu lhe disse, não vê quem não quer. As mudanças estão a passos de tartaruga, mas estão chegando. É claro que o mundo muda, mas não mudam as histórias.
- É, vou entrar. Tenho outros objetivos literários.
Deixei lá ele com meus irmãos. Acho que as lapadas serviram para alguma coisa. Mesmo assim, já tinha percebido que ele era muito estudioso e inteligente. Ao entrar, meu pai me disse que os cavalos apareceram novamente com as tranças feitas. Eu olhei, parei e fui, sorrindo. Fiquei entusiasmada, a história de Cumadre Fulôzinha é linda e comovente, essa jovem protetora das florestas.
Poucos minutos depois, meu pai bateu à porta do meu quarto e me perguntou:
- Posso sentar para conversarmos um pouco?
- Claro, Papai, que pode.
- Disse que os cavalos apareceram novamente com as tranças feitas e você não me disse nada, sorriu e entrou.
- Sim, Papai, ouvi. Mas não tenho muito o que fazer e nem o que dizer. Sou muito feliz com relação a estas histórias. Tenho minha opinião, o senhor sabe que não fui eu que fiz as tranças.
- Quero conversar com relação a isso mesmo, minha filha. Fui um pouco estúpido com você. É apenas uma criança e não tenho esse direito de tirar suas ideias, suas histórias. Quando eu era criança, também acreditava nessas e noutras histórias ou estórias, não sei bem como classificar.
- Quais outras histórias, Papai, fora a Cumadre Fulôzinha? Qual a mais audaciosa? Agora fiquei curiosa, sabe, Papai. Eu sempre achei que o senhor acredita mesmo. E também acho que o senhor tem medo.
- Não é medo, filha, sou cauteloso. Tomo cuidado com o desconhecido, que é sempre uma sala ao lado, que não conseguimos enxergar.
Meu irmão, o mais novo, entrou e me trouxe um recado. O amigo do meu irmão estava me chamando. Papai ficou curioso e veio atrás de mim. Quando cheguei à sala, ele me entregou uns livros que falavam sobre a figura do Jeca Tatu e do boitatá. Meu pai se admirou e perguntou:
- Mas você, que há poucos dias zombava dessas histórias, agora trás livros para minha filha?
- A vida nos ensina. A vida nos arruma cada lição que é melhor não duvidar e seguir.
- Quem te viu e quem te vê. Só eu mesmo vendo para crer, rapaz. Vejo que tem juízo, gosta da leitura, a leitura é que faz os grandes homens.
- Não podemos deixar que os muros nos separem, embora o mundo caminhe para isso, para formar muros.
- E vão ser muitos muros, meu rapaz, retos, curvos, descendo, quebrados, subindo e dividindo as pessoas, tapando as vistas e escurecendo. Vamos ter que nos acostumar com esses traçados.
Escutando essas conversas pedi licença e me ausentei, entusiasmada com os livros. Mas antes, fui à cozinha separar os doces para levar para a janela do meu quarto. Papai gostou da conversa do jovem e o convidou para o jantar. Minha mãe paparicava meu irmão mais novo. Vovó me cumprimentou com carinho e me pediu um dos livros emprestados. E me diz:
- É muito nova para namorar.
Fiquei sem entender. Sabia que os adultos é quem botava caramiolas na cabeça das crianças, mas não dava muita importância. Meu irmão mais velho veio ao meu quarto e me chamou para jantar.
Na mesa encontrei a família reunida e o rapaz. Conversamos sobre literatura, gerações e formulação artística literária. Falamos de escritores atuais, papai ficou estupefato com a nossa conversa e me perguntou:
- Quer dizer que eu tenho uma intelectual em casa. Não só de histórias de Cumadre Fulôzinha, mas uma intelectual da literatura.
Todo mundo sorriu, menos eu. Afinal aprendi o mundo das letras e da literatura com o meu pai. Não entendi o porque de tanto espanto. Falar de agricultura era o forte de papai, aprendi a lidar com a terra muito cedo. Fiquei sempre acompanhando os negócios de papai só para ver como funcionavam todas aquelas máquina que aravam a terra. Vi o algodão crescer e vi a época da colheita. Era uma época, também, de grandes festas.
Fui para o meu quarto ler os meus livros. Deleitar-me na beleza da literatura, me deliciar nas histórias de Monteiro Lobato, grande escritor. Suas personagens infantis me fascinavam com tanta bondade e astúcia. Sem riqueza, mas cheios de felicidade. Sua ingenuidade era peculiar, me sensibilizava, permitindo me iluminar de nobre caráter.
Vi sua interpretação com a chegada do cinema, sendo caricaturado pelo famoso Mazzaropi.
Inventaram o chapéu de palha, a calca de pernas curtas, mostrando as botinas. Notei que a imagem desvirtuava o sentido simbólico, construído pelo belo escritor Monteiro Lobato. Nessas minhas leituras, eu viajava longe, ora estava no Brasil, ora na África, ora em Portugal, ora na Oceania, mas não esquecia dos doces na janela.
Senti um frio meio louco, subindo assim pelo meu corpo, como se alguém estivesse se aproximando, mas não tão pertinho. Aquele vento vindo de fora. Tive um impulso e fui até a janela do meu quarto. Vi que os doces já tinham sumido. Nesse momento, meu irmão mais velho bate na porta do meu quarto. Tudo muito silencioso. Seu amigo ainda estava na nossa casa, foi convidado a dormir pelo meu pai. E astuciosamente meu irmão me diz:
- Vamos lá nos cavalos, ver se a Cumadre Fulôzinha está desmanchando as tranças deles.
Pensei - nada mal e perguntei ao meu irmão:
- E ele vai?
Fiquei admirada depois de tudo o que tinha acontecido.
- Sim, eu que chamei ele. Ele tá quieto, aprendeu a lição.
Fomos os três, astutos e corajosos. A lua estava linda íamos pelo clarão, nada de conversas informais, nem risos ou piadas. Para nós, era um assunto sério naquele momento. Mesmo sabendo que mantendo o sorriso no rosto, estávamos mais aptos a lidar com nossos próprios problemas e a nos relacionarmos com os outros. É assim que fazia sorrirmos diante das nossas chamadas de atenção. E ali, naquele momento, era manter nossa curiosidade em um só foco.
Chegamos devagar, todos os três, mas com aquele receio. O sítio tem esses mistérios e nos dá medo. Ficamos caladinhos, todos os três juntinhos. Com o clarão da lua, nos aproximamos e vimos as tranças dos cavalos se desmanchando. Vimos as mãos na crina pra lá e pra cá. Nisso sentimos a presença de alguém atrás de nós. Quando olhamos, era nosso pai, que fez um sinal para não falarmos nada. Ele observava aquele fenômeno. Para nós, já estava esclarecido aquele mistério: Cumadre Fulôzinha existe mesmo e, mais uma vez, constatamos que ela é protetora das plantas e animais.
Meu pai se sentou bem juntinho da gente e sentimos que ele estava tenso, mas observava muito atencioso, não perdia um detalhe.
Quando a última tranca foi desmanchada, veio em direção da gente uma sombra, como se fosse um vulto. Chegando mais perto, sentimos o assobio baixinho. Vimos os cabelos bem longos e muitas flores enfeitando. Eu quis falar, mas minha língua travou, minhas pernas ficaram trêmulas. Senti quando alguma coisa passava a mão no meu rosto. De repente, aquilo foi desaparecendo e o assobio que ouvimos tão pertinho já estava bem distante.
Papai ficou sem fala, a calça do amigo do meu irmão estava toda molhada. Ele, coitado, urinou nas calças, mas papai não comentou o assunto e mandou todos irem dormir:
- Amanhã conversaremos.
No dia seguinte, papai nem comentou o assunto. Acordou de bom humor, como sempre, ele mesmo dizia: “o bom humor afasta desespero, afasta doenças, tristeza, ameniza os obstáculos do cotidiano, que a vida impõe”.
No café, mamãe perguntou o porquê do silêncio:
- Por que estão tão silenciosos?
- Talvez preguiça de falar, Mamãe. É bom o silêncio, né, Papai?
- Estou pró-ativo nas resoluções de problemas.
Tudo bem, mamãe sabia que papai contava tudo para ela. Nesse instante, meu irmão mais novo comentou ter visto a Cumadre Fulôzinha, dizendo que ela foi no alpendre onde ele estava brincando e disse:
- A mata está prestes a ser desmatada e ela vai mudar para outra mata bem perto daqui. Acho que vai ficar nos restos da mata atlântica.
- Mas até você, Juquinha! - disse mamãe sorrindo
- Sorria Mamãe! O sorriso funciona como uma luz e aponta melhores caminhos para uma solução – afirmei.
- Isso, todos dotados de senso de humor – disse Mamãe.
- E todos tão sábios - disse Vovó.
Nesse clima de silêncio, terminamos o café e cada um foi para os seus afazeres. Eu, para o meu quarto, meu irmão foi tocar sua sanfona em um dos alpendres, minha vó, fazer comida, mamãe para a casa da costureira, papai foi olhar os trabalhadores arar a terra. Meu irmão mais novo veio até o meu quarto me atrapalhar em minhas leituras.
- Vovó disse que vai você vai casar com o amigo de mano.
- É, mas vovó sabe que não tenho idade para casar.
- Mas vovó disse - repetiu.
- Vá brincar lá fora, me deixe ler.
- Vamos brincar comigo?
- Não. Vá só.
- Eu tenho medo de Cumadre Fulôzinha.
- Tem não, você disse que viu ela.
- E vi sim. Vão desmatar a floresta, ela disse.
- Quando foi isso?
- Ontem, ela veio me ver e me disse que eu não tivesse medo dela.
- E você tem? Chega. Saia daqui e vá brincar.
- Não, não.
Papai entrou e perguntou o por que daquela gritaria. Eu me levantei e fui brincar com meu irmão, para ele parar de chateação. O amigo do meu irmão voltou à fazenda para se despedir. Estava indo para a cidade e ia passar uns dias por lá. Veio perto de mim dar um abraço e me dizer que voltaria. Papai observava tudo. Ele foi embora e, de repente, me deu uma tristeza. Disfarcei, entrei e meu irmão mais novo ficou sozinho, brincando.
Papai me acompanhou e perguntou o motivo daquela tristeza repentinamente. Eu não soube responder, nem eu mesma sabia o motivo.
- Acho, Papai, que são as férias que estão terminando. Papai saiu com um sorriso nos lábios.
Voltei para o meu quarto, com muito afinco para continuar minhas leituras. Papai veio e bateu à porta. Abri com um nó na garganta. Ele sentou e me perguntou se podíamos conversar. Fiquei meio constrangida e, ao mesmo tempo, me sentindo segura. Meu pai sabia das coisas e tinha as palavras certas na hora em que mais estávamos precisando.
- Filha, você é meu orgulho. Além de estudiosa e inteligente, você tem uma gama enorme de qualidades indispensáveis. Espero muito de você e nem preciso exigir nada. Seja o que for, sei que você saberá ultrapassar.
- Eu acho que estou meio perdida, não sei o que está me acontecendo.
- Mas eu sei, Filha. Sei, e tenho certeza!
- O que é, então?
- O amor está lhe pegando.
- O amor?!!!
- Amor, sim, e isso é bom. Acontece com as meninas da sua idade. Acontece e faz bem, desde que seja trabalhado e acompanhado por orientações. E quem tem que orientar somos nós, filha, a família.
- Mas, eu não quero. Prefiro estudar, brincar, ainda sou menina. Às vezes penso que sou menina, mas sou uma moca que entende tudo, ou menina, sei lá! Não sei, estou em dúvida.
- Você é uma menina-moça. Não tenha medo. Não tenha medo do amor, minha filha. Como já lhe disse, você tem família. Estamos aqui para orientar, você não está só.
- E mamãe?
- Sua mãe vai achar bonito, minha filha. Ela já passou por isso, ela foi menina-moça.
- Mamãe sentiu isso que eu estou sentido?
- Sim, todas as meninas.
- Mamãe sentiu isso quando lhe viu?
- Se respondo o que você está querendo saber, eu era amigo do irmão da sua mãe.
Sorri, e meu pai foi saindo. O sorriso é assim, fala por nós. É como os olhos, entendo o que meu pai falou, entendo que ele quis me dizer. Que o importante é manter a postura séria e lutar pelo que se deseja. Meu pai tinha aquele poder de flexibilidade, era uma característica dele. Costumava tolerar mais as diferenças e lidar melhor com as pessoas. Ele não tinha dificuldades para distinguir momentos, estava sempre ali, principalmente para entender nossas histórias de mitos e lendas.
Cumadre Fulôzinha é uma cabocla linda, gosta de brincar. Vive na zona da mata do Nordeste, no Estado de Pernambuco. Está em todas as partes, como eu não sei. Consegue desaparecer sem deixar rastros. Penteia os pelos dos cavalos, fazendo sua tranças, que só ela desmancha. Seus assobios se estendem longe e desorientam os caçadores para não deixá-los matar os animais e, assim, eles se perdem nas matas.
Cumadre Fulôzinha protege as matas, gosta de interagir com as pessoas. Para agradá-la é só deixar doces, bombons, mel e um cachimbo com fumo.
É misteriosa e linda, eu senti o assovio dela bem pertinho de mim. São história que eu vou contar para os meus filhos e netos.
Na fazendo do meu pai e nas redondezas, até hoje, ninguém duvida das histórias de Cumadre Fulôzinha. Todas as crianças, adolescentes e adultos ouviram e viram que Cumadre Fulôzinha é alma viva dentro da mata. Quando menina, se perdeu na mata e não soube como voltar. Até hoje, é guardiã de toda floresta.
Não existe controvérsia. Essa mulher linda e misteriosa tem sido a protetora afetiva de todos os pequenos animais que ainda vivem nas matas. Até mesmo com o desenvolvimento, ela tem acompanhados os pula-pulas, macaquinhos mimosos que ainda vivem bem pertinho dos humanos, fazendo gracinhas.
Entendem essa discussão como dolorosa, porém necessária. Com o avanço tecnológico, com tanto desmatamento e resistência, temos de refletir, continuamente, sobre inúmeros assuntos desse tipo, balizamente éticos.
Mesmo com todas essas mudanças, a cabocla continua à frente, sendo severa e prestimosa, protegendo a fauna e a flora.


Adriana Versus. 

2 comentários:

  1. Cumadre Fulôzinha, é uma lenda recontada, por Adriana Versus, É uma moça misteriosa, dizem que é uma lenda guardiã das matas, muito, prestimosa, e dá surras em quem entra na floresta,para maltratar animais, cortar as plantas..Tem cabelos longos que cobre todo o corpo e enfeitado com flores...Dizem que foi uma menina quando pequena se perdeu na mata e não soube voltar, daí virou um mito, folclore, lenda...É magnifica a história ou estória leiam.

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  2. Simplesmente ...

    Você minha amiga Adriana, é muito especial e talentosa..
    Merece o mundo amiga!
    Vitórias!!!!

    beijos minha amiga linda <3

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