sábado, 2 de novembro de 2013

Texto II A Menina Que Nunca Tinha Chance

                 
                                                                 

       Fugir foi provocar um conflito, gerar uma oportunidade buscando um sonho...  Fui pegar o ônibus na estrada de frente à escolinha. Ninguém estava vendo ou, se visse não daria importância, pouco ligavam para crianças...  Estava só com o dinheiro da passagem, era o suficiente no meu entender.
      Quando o ônibus chegou, entrei depressa...  Estava com dois medos: estava fugindo...  E o outro, não sabia para onde ir...  Meus medos me ajudavam de certa forma. Quando o ônibus se aproximou da cidade meu coração bateu mais forte, me deu um frio na barriga. Logo vi o ponto de ônibus onde minha mãe de criação parava todos os sábado para vender ovos. Foi lá que eu desci. Uma menina me viu, ficou olhando e disse para a mãe:
     - Olha, mamãe, aquela menina que vende os ovos, todos os sábados, com aquela senhora.
     -  É mesmo, filha! Vamos chamá-la para perguntar o que está fazendo sozinha por aqui.
     -  Ei, garota, o que faz por aqui sozinha, com essa malinha na cabeça ?
     -  Estou procurando um lugar para ficar.
     - E sua mãe ?
     - Eu fugi do sítio. Ela não é minha mãe, é de criação.
     - Mas é mãe. Mãe é quem cria.
     - Nem sempre senhora! Nem sempre.
     - Bem, na rua você não pode ficar. Quer ficar em minha casa ?
     - Como a senhora quiser. É claro que sim, muito obrigada pela acolhida.
     - Bem, no sábado sua mãe passa. Se ela quiser lhe levar, eu não posso fazer nada. Mas é bom procurar alguém para avisar. Eles vão ficar preocupados.
      - Quanto a isso, não se preocupe. Sou filha de criação, eles não ligam para mim.
      - Mas em todo caso, vou ver como fazer ou, então, esperá-la passar no sábado.
      - Por que fugiste? - perguntou a filha.
      - Eu estudava na escolinha do sítio. Pedi para vir para a escola na cidade, não gostaram e me tiraram da escolinha. Fiquei com raiva e fugi. Quero estudar, gosto das histórias que leio nas cartilhas, gosto das letras, é bonito ver aquelas letras grandes, aquelas histórias de gatinhos, vovozinhas, a xícara que tem asa mas não voa.
       - Que coisa linda! Estou ouvindo isto! - disse a senhora, toda entusiasmada.
       - Você quer continuar estudando ?
       - Com certeza! Eu posso trabalhar e estudar.
       - Então, garota, veio para o lugar certo. Eu sou professora aqui num grupo escolar. Minha filha é aluna lá. Posso lhe matricular e você vai com minha filha, seu trabalho vai ser acompanhar a minha filha.
        A alegria me bateu nos olhos, minhas pernas já não tremiam mais. Me ajoelhei ali mesmo e agradeci a Deus por tamanha benção. Senti uma mudança linda dentro de mim. Ela me acomodava com carinho, a filha me chamava logo de irmã. À tarde fomos todas para o Grupo Escolar. Ela me botou para fazer um teste,
fui lendo logo uma cartilha. A diretora me designou logo para uma classe mais adiantada, foi maravilhosa aquela tarde.
         - Acho que estou sonhando !
         - Por que ?
         - Você é um anjo da guarda. Ao descer do ônibus, você me conheceu logo e me chamou. Foi minha sorte grande.
         - Eu e Mamãe. Somos sozinhas mas somos felizes. Papai faleceu mas deixou a gente numa situação confortável. Mamãe trabalha, eu estudo, por enquanto, ali. Pretendo fazer o Normal.
         - Normal! Normal? o que isso?
         - Normal é para ser professora.
         - Ah, sim...  Eu pretendo ser escritora. Escrever livros ! Fazer histórias, fazer poesias, fazer músicas, fazer letras.
         - Estou rindo de você, da sua alegria, do seu entusiasmo.
         - Sabes que vai enfrentar problemas, o pessoal lá vai querer lhe levar de volta. - disse a professora.
         - E como vou fazer para me livrar disso ?
         - Não vai se livrar, vai resolver o problema. Problemas se resolvem. Sábado, quando ela passar vou falar com ela. Tenho que pedir seu registro, não pode estudar sem documentos.
         Chegou o sábado tão esperado, eu fiquei dentro de casa...  De longe avistei ela vindo com a cestinha de ovos, como sempre parando e as pessoas comprando. Quando chegou mais perto, estava muito sorridente, tranquila. Parecia que nada estava acontecendo.
          - Bom dia, como vai ? Perguntou a professora.
          - Vou bem.
          - Está sozinha hoje. Perguntou a professora para ver a intenção dela.
          - É, a menina que me ajudava fugiu, foi embora. Para onde, não sei...
          - A Senhora não está preocupada ?
          - Não. Não era filha, era filha de criação. Sonhava alto demais, melhor ter ido, mesmo.
          - Mas é filha. A senhora vem criando ela desde pequenina, registrou e tudo. É sua filha.
          - Não registrei, não.
          - Não?!!!
          - Não. Para não ter direito às terrinhas que a gente tem. Eu tenho outros filhos e eles não queriam dividir nada com ela.
          - E por que ela sonhava alto ?
          - Porque queria estudar. E estudar lá,  é só na escolinha, só para aprender a escrever o nome. Quando aprendeu, ela queria mais, queria ir para a escola na cidade... Vi que ia me dá trabalho.
          - Meu Deus! A senhora não quer saber nem para onde a criança foi.
          - Não, meus filhos não estudaram, trabalham no cabo da enxada até hoje. Filhos dos outros só dá trabalho.
            Depois desse diálogo, a professora entrou. Não disse nada, não tinha o que dizer. Para que dizer ?   A menina estava ali, não iria alterar nada.
           - Você ouviu, minha filha ?!
           - Ouvi mamãe. Só tem uma alternativa: adote ela !!!
           - Você quer uma irmã ?
           - Claro! E ela quer um lar, estudar, Mamãe! Somos duas, agora seremos três.
           - Vou no cartório, vou ver como devo fazer.
            Naquela época não existiam os rigores da lei, como tem hoje. Você podia ir no cartório registrar uma criança. Era normal fazer isso. Bastava arranjar testemunhas. Uma das coisas que se fazia naquela época era aumentar a idade para votar cedo...  Graças ao desenvolvimento cultural e tecnológico, isso mudou, e mudou para melhor.
           Então você acha que essa menina não venceu ?
           Você acha que ela criou sua oportunidade? Mesmo sem saber como seria o mundo lá fora, foi corajosa, relevante, organizada, venceu pela sabedoria e esperteza.
           Será que ela foi mesmo a escritora que tanto sonhava ?
            Acompanhe nos próximos textos...
            Irei ficar muito grata por você interagir comigo nestes textos.
 
 
         





       
     
 

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